A academia
A algum tempo escrevi sobre o
Estado de maneira didática em que o concebi como um emaranhado de
instituições e não como uma estrutura acima de qualquer
instituição¹. Isto é, a destruição do capital é a destruição
do Estado concomitantemente, pois o mesmo não é apenas uma arma de
domínio de uma classe sobre outra, ele é a caracterização total
de todas as relações sociais entre dominadores e dominados, entre
explorados e exploradores². Então qualquer estratégia que procure
a conquista do poder político³ é nada mais que a troca de elites,
e como bem dizia Marx, uma elite apenas luta para substituir a
existente ou mesmo aniquilá-la. Sob tais aspectos básicos é fácil
fundamentar erros da estratégia leninista. A intenção aqui não é
caracterizar de modos gerais a estratégia de revolução leninista,
mas sim sobre uma parte específica do atual Estado existente para
silenciar os intelectuais dos oprimidos e explorados: a academia.
A academia é o espaço aonde se
produz a intelligentsia4 capitalista. Para entendermos
esse processo é necessário que entendamos um pouco da dialética de
dominação existente na sociedade capitalista atual, aonde o
processo não mais é de um proprietário privado dos modos de
produção, mas falamos de vários proprietários donos de pequenas
ações geridas a partir de uma nova classe interna de capitalistas,
os gestores. Tal classe é a intelligentsia capitalista, pois é ela
que facilita e domina os processos de interação entre as diversas
instituições e, portanto, atualmente são responsáveis pela
manutenção do status quo. São os teóricos e gestores da dominação
das elites.
Assim podemos entender a academia
como um espaço importante para a formação das elites futuras, não
obstante percebemos essas interações na sua própria forma de agir.
A academia é financiada por governos, por empresas, tem regras
próprias e um linguajar próprio, e detém a hegemonia do
conhecimento humano. E como toda instituição capitalista detém
contradições sob as quais também produz setores subversivos e que
procuram romper com a mesma, mas tais setores são minorias e, caso
radicalizem suas posições, são sumariamente expulsos.
Da prática acadêmica ao
academicismo de esquerda
Vale a pergunta, é a academia um
espaço tático importante para a luta de emancipação do explorados
e oprimidos? Como limitar os aspectos dessa tática?
Quando do início das lutas
proletárias nos anos 1840 a nova classe de explorados, o
proletariado, não era considerada uma classe política dentro das
instituições, pois não detinha de forças de “barganha” para
conquistas sociais dentro das instituições existentes. Todo o
processo subsequente, de formações das sociedades de resistência,
a AIT, os partidos comunistas foram lutas do proletariado para a sua
emancipação, e finalizaram-se no empoderamento do proletariado como
uma classe política dentro das instituições capitalistas. Esse
processo de transformação de uma classe sem poder político em uma
classe política veio acompanhada de processos de recuperação5
das então organizações proletárias, isto é, para o empoderamento
da classe dentro da sociedade capitalista eram necessárias a criação
de instituições para tal empoderamento, assim se legalizaram os
partidos sociais-democratas e os sindicatos, e como novas
instituições capitalistas se baseavam no uso das mesmas armas do
Estado (burocracia, autoritarismo, hierarquia, cristalização de
elites) para o engessamento de qualquer processo político que viesse
a destruir o Estado e o Capital. Isto é, estava claro, partidos
sociais-democratas e sindicatos se tornaram forças
contrarrevolucionárias.
A academia aparece com uma
característica semelhante, no entanto se foca nos chamados
intelectuais orgânicos de Gramsci, ou minoria ativa para alguns
anarquistas. Todo processo de lutas é também um processo de
formação de vanguardas, não importa o nome que se dê a essa
vanguarda, a sua relação dialética e sua formação a partir dos
movimentos é da mesma forma, pois sempre existe aquele mais
solicito, mais falador, com mais recursos, com mais tempo, etc. Tal
vanguarda em suma é quem acumula poder dentro da instituição
capitalista, e a sua recuperação, isto é, a sua cristalização é
importantíssima à classe dominante para que um processo de luta não
se torne em um movimento de contestação e mais radicalizado. Isto
é, surge uma segunda função da academia nesse momento. Enquanto
analisada pelo viés do dominador ela forma a intelligentsia
capitalista, no viés da classe política do proletariado ela procura
empoderar e cristalizar uma vanguarda de luta dos explorados e
oprimidos, isto é, ela se torna uma porta de passagem para a
transformação de uma vanguarda em uma nova elite. Aqui a academia
se responsabiliza por um processo de cristalização de
vanguardas.
No entanto quando da
não-existência da possibilidade de inserimento de um vanguarda na
academia para a sua cristalização ou por falhar nessa tentativa,
visto que a mesma detém de limites dentro do Estado, a mesma se
preocupa em uma terceira função, a do silenciamento das vanguardas
dos oprimidos e explorados. É aqui que se concentra o academicismo
de esquerda.
A cristalização das
vanguardas e a formação de uma nova elite
Podemos6 situar a
iniciativa desse processo com os marxistas legais na Rússia antes de
1905, em que em oposição ao bakuninismo radical de rejeição total
ao Estado os mesmos surgem com ideias mais apaziguadoras com relação
a isso. No entanto a sua intensificação acontece mais poderosamente
(no contexto de lutas anticapitalistas) com a subida ao poder do
partido bolchevique, e mais especificamente com as doutrinas da
Internacional Comunista Stalinista. Para o Estado soviético a
academia se tornou parte fundamental no processo de planejamento da
economia planificada e das relações institucionais. Isto é, apesar
das tentativas, os conflitos entre os gestores e os proletários
foram se intensificando, e a academia se tornou arma poderosa nas
mãos dos gestores dentro do capitalismo de Estado soviético, para
que os poderes delegados aos proletários braçais nas fábricas e
no campo fossem ou silenciados ou recuperados a academia era parte
importante de todo o processo.
O processo de formação de um
nova elite, ou melhor dizendo de uma “aristocracia proletária”,
perpassa por três momentos principais individuais e coletivos. O
individual se caracteriza pela elitização da vanguarda a uma classe
dominante e o coletivo a ideologização dessa nova vanguarda
enquanto classe como uma forma de poder proletário. Assim academia
assume dois papeis dialéticos e fundamentais nesse processo,
enquanto transforma socialmente (materialmente e objetivamente) uma
vanguarda em uma elite (gestores), ao mesmo tempo ilude (construção
da ideologia do Estado Proletário) a base sob a perspectiva de que o
que acontece é um maior poder do proletariado nas instituições,
isto é, a justificativa que com isso estava se combatendo a divisão
do trabalho braçal e mental, e ao mesmo tempo formando instituições
proletárias e comunistas.
O primeiro momento individual na
cristalização da vanguarda pela academia se dá pelo empoderamento
do mesmo dentro de um ambiente já elitizado que é a academia, ao
qual o mesmo tem direito a voz e expressão através de
interlocutores (os acadêmicos), a citar as pesquisas científicas. O
segundo momento é quando o mesmo passa por um processo de
internalização do sistema acadêmico passando assim a se utilizar
de uma linguagem nova, aperfeiçoada de acordo com as normas
internas, é o processo no qual a vanguarda é formada, treinada. O
terceiro momento é dado pela inserção da vanguarda dentro desse
ambiente, passando então a fazer parte de uma instituição
capitalista com formas e relações próprias, aqui a vanguarda se
cristaliza.
Quando analisamos coletivamente
esse momentos percebemos que ao primeiro passo o coletivo se ilude
com o fato de estar sendo empoderado dentro de uma instituição
elitizada do capital, isto é, o mesmo se sente politicamente mais
poderoso. O segundo momento o mesmo se ilude com o fato de que
considerando que essa instituição detém da hegemonia do
conhecimento o coletivo possa aprender muito com ela. O terceiro e
último momento, é quando após a formação da vanguarda a mesma é
tida como superior ao coletivo, a personalização do movimento
coletivo no entanto mais consciente e sábia. Isto é, nesse momento
o coletivo concebe a vanguarda formada como aqueles que melhor sabem
os caminhos que o movimento deve tomar. É a cristalização da
vanguarda pelo coletivo, a eternização da vanguarda pelo coletivo.
O passo subsequente a esses três
é a morte e o nascimento. É a cisão dos dois, e a destruição do
movimento. Nesse momento a vanguarda se torna elite, e o movimento se
potencializa apenas historicamente na vanguarda que estava
cristalizada. Isto é, a anterior personalização do movimento pela
academia, recuperou o movimento, retirou-lhe o caráter de
contestação e o inseriu como apenas outro conhecimento acadêmico.
É a morte do movimento como luta do oprimido e explorado, a
transformação da vanguarda em elite.
Assim percebemos que um movimento
sempre influencia e é influenciado pela sociedade, e ao mesmo tempo
a cristalização da vanguarda ocorre pois houve permissividade da
base para que isso acontecesse. Não existem culpados morais, existem
processos dialéticos e históricos que recuperam lutas sociais, a
academia é apenas uma instituição voltada para parte do movimento.
Esse processo se repete nos
movimentos de luta sul-americanos com diferenças sutis na
caracterização dos momentos, mas com um método semelhante chegamos
as mesmas conclusões. Das mesmas formas podemos perceber o que
significa as vanguardas do movimento negro assumindo ministérios e
secretarias, ou sindicalistas assumindo pastas no governo, ou mesmo a
eternização das direções sindicais e partidárias.
O academicismo de esquerda
Como já explicado, a academia
concentra suas forças de recuperação nas vanguardas dos
movimentos, mas isso não a dissocia do coletivo. Isto é, todo
processo de recuperação de vanguardas é um processo de
recuperação de movimentos. Uma coisa não implica a outra, elas são
dialéticas, assim como são as instituições que as recuperam. Isto
é, o processo de recuperação do movimento está dialeticamente
ligado ao processo de cristalização das vanguardas, da mesma forma
que a instituição academia (onde se cristaliza a vanguarda) está
dialeticamente ligada a instituição que recupera o movimento
(sindicatos, ministérios, etc). Todo processo de recuperação é um
processo dialético das relações sociais na sociedade capitalista.
Agora o debate se concentra sobre
quando não existem as possibilidades da vanguarda ser cristalizada
pela academia, a citar quando a mesma não consegue passar em
vestibulares, não tem condições materiais de se manter ou mesmo
não é aceita. Nesse momento parece que a academia falha na
cooptação das vanguardas, mas não. Quando não se pode cristalizar
a vanguarda a consolidando como uma elite acadêmica, utiliza-se da
elite acadêmica resultante da cristalização de vanguardas
anteriores para silenciar as novas. Isto é, a academia se insere nos
movimentos sob a perspectiva de silenciar suas vanguardas. São os
chamados cursos, encontros e seminários. Nessa prática a academia,
na pessoa dos acadêmicos, se utiliza de toda sua erudição e
capacidade subjetiva de sistematização dos pensamentos para
projetar o seu poder material e objetivo na subjetividade das
vanguardas. Isto é, de fato a academia passa a formar as vanguardas
dos movimentos.
É fácil de perceber essas
questões quando analisamos os encontros do MST em que os cursos são
dados por doutores e acadêmicos, ou os encontros nacionais da CUT,
ou do movimento estudantil. A subjetividade dessas vanguardas são
tomadas pela projeção da classe acadêmica (gestorial) sobre elas.
O processo de utilização de
toda sua erudição para projetar o seu poder material e objetivo
sobre as subjetivas das vanguardas, e também das bases, é o que eu
chamo de academicismo de esquerda. Um debate distante das
lutas enquanto viabilidade de debate das bases.
Não é aqui uma afirmação para
o rebaixamento da capacidade de debate do movimento, mas da
construção de debates sem a interferência da academia em seu meio.
Construção de movimentos autônomos, não somente em palavras, do
Estado, mas prática e subjetivamente.
Movimento feminista
contemporâneo tem muito a ensinar
Entendo por movimento feminista
contemporâneo as teorias interseccionais e abolicionismo de gênero.
Esse feminismo colocou em pauta uma questão importante de sua luta,
o fato de existirem homens anti-machistas que silenciavam mulheres
nos movimentos que deveriam ser para sua emancipação. Isto é, por
mais avançada que fosse a consciência do homem ele continuava a
querer ser protagonista de uma luta que não cabia a ele. Isto é, o
agente de uma instituição por mais consciente que seja acabará
sempre silenciando um movimento.
Mas não é apenas isso ao qual
devo dar créditos ao movimento feminista por dar-nos um debate de
tamanha envergadura, mas em especial a militante do feminismo
comunitário Julieta Paredes que no ano de 2013 durante o Fazendo
Gênero na UFSC criticou o feminismo brasileiro por se concentrar
tanto em aspectos acadêmicos. Olhei para o lado e vi de fato uma
maioria acadêmica, olhei os trabalhos apresentados e eram de fato
acadêmicas empoderando movimentos, aperfeiçoando a linguagem de
resistência desses movimentos de contestação do machismo,
patriarcado, para uma linguagem puramente acadêmica. Não cabe a mim
debater se Paredes estava correta em sua crítica, no entanto ela me
abriu os olhos para um posicionamento crítico com relação a
academia, um posicionamento que as feministas acertadamente tinham
com homens em seus movimentos.
A academia enquanto tática de
luta
Devemos entender que o processo
histórico de formação de certas instituições carregam em si
sementes importantes para a luta do proletariado. Se de um lado a
academia apresenta um caráter contrarrevolucionário a mesma tem
conquistas importantes para os processos de lutas, pois tem
conseguido aglutinar conhecimentos diversos de maneira mais acessível
favorecendo a sua socialização. No entanto isso não deve ser
confundido com aspectos da militância de luta. Supor que a academia
é um espaço com o qual lutas contra o hegemônico (como supõe
certos setores) parece-me um erro tático, dada a poderosa arma de
recuperação das vanguardas que a mesma contém. Assim, a academia
se torna um instrumento tático dedicado exclusivamente a propaganda
política. Não há estrategicamente interesses dentro da academia,
apesar da mesma estar ligada muitas vezes (Brasil) aos setores de
trabalhadores em educação, mas é preciso que nesse contexto haja
uma diferenciação7.
Essa diferenciação deve ser
passo fundamental existente já no movimento estudantil, compreender
criticamente a academia como uma instituição da contrarrevolução,
do silenciamento dos pensadores orgânicos dos movimentos dos
explorados e oprimidos, possibilita que o militante estudantil do
presente não se torne no acadêmico de sinceridade revolucionária
mas prática contrarrevolucionária do futuro. Isto é, a academia é
contrarrevolucionária em essência.
Os limites táticos da academia
se concentram no seu uso de socialização do conhecimento histórico
de lutas e no uso para financiamento de atividades de propaganda
política (edição de livros, minicursos, uso de espaços
estruturais para encontros de lutas).
NOTAS
- Radicalizar para destruir as
instituições http://escritosradicaiseutopia.blogspot.com.br/2013/08/radicalizar-para-destruir-as.html
>
- Idem
- Estratégia Revolucionária do
PCB, vide https://www.youtube.com/watch?v=g6L0vGmVerY
- Intelligentsia
capitalista vista em Jan
Waclaw Makhaiski
- Recuperação
é o processo pela qual as instituições capitalista retiram o
caráter revolucionário e radical de movimentos e coletivos
cooptando-os para a sistemática institucional do Estado e do
Capital.
- É
uma compreensão particular minha.
- No
Brasil tem-se um caso especial de que o professor universitário é
também um elemento da academia, e isso merece atenções especiais
para diferenciações necessárias. O artigo pretende centrar-se sob
uma crítica de perspectiva do movimento estudantil autônomo.