quinta-feira, 10 de julho de 2014

O academicismo e a esquerda


A academia

A algum tempo escrevi sobre o Estado de maneira didática em que o concebi como um emaranhado de instituições e não como uma estrutura acima de qualquer instituição¹. Isto é, a destruição do capital é a destruição do Estado concomitantemente, pois o mesmo não é apenas uma arma de domínio de uma classe sobre outra, ele é a caracterização total de todas as relações sociais entre dominadores e dominados, entre explorados e exploradores². Então qualquer estratégia que procure a conquista do poder político³ é nada mais que a troca de elites, e como bem dizia Marx, uma elite apenas luta para substituir a existente ou mesmo aniquilá-la. Sob tais aspectos básicos é fácil fundamentar erros da estratégia leninista. A intenção aqui não é caracterizar de modos gerais a estratégia de revolução leninista, mas sim sobre uma parte específica do atual Estado existente para silenciar os intelectuais dos oprimidos e explorados: a academia.
A academia é o espaço aonde se produz a intelligentsia4 capitalista. Para entendermos esse processo é necessário que entendamos um pouco da dialética de dominação existente na sociedade capitalista atual, aonde o processo não mais é de um proprietário privado dos modos de produção, mas falamos de vários proprietários donos de pequenas ações geridas a partir de uma nova classe interna de capitalistas, os gestores. Tal classe é a intelligentsia capitalista, pois é ela que facilita e domina os processos de interação entre as diversas instituições e, portanto, atualmente são responsáveis pela manutenção do status quo. São os teóricos e gestores da dominação das elites.
Assim podemos entender a academia como um espaço importante para a formação das elites futuras, não obstante percebemos essas interações na sua própria forma de agir. A academia é financiada por governos, por empresas, tem regras próprias e um linguajar próprio, e detém a hegemonia do conhecimento humano. E como toda instituição capitalista detém contradições sob as quais também produz setores subversivos e que procuram romper com a mesma, mas tais setores são minorias e, caso radicalizem suas posições, são sumariamente expulsos.

Da prática acadêmica ao academicismo de esquerda

Vale a pergunta, é a academia um espaço tático importante para a luta de emancipação do explorados e oprimidos? Como limitar os aspectos dessa tática?
Quando do início das lutas proletárias nos anos 1840 a nova classe de explorados, o proletariado, não era considerada uma classe política dentro das instituições, pois não detinha de forças de “barganha” para conquistas sociais dentro das instituições existentes. Todo o processo subsequente, de formações das sociedades de resistência, a AIT, os partidos comunistas foram lutas do proletariado para a sua emancipação, e finalizaram-se no empoderamento do proletariado como uma classe política dentro das instituições capitalistas. Esse processo de transformação de uma classe sem poder político em uma classe política veio acompanhada de processos de recuperação5 das então organizações proletárias, isto é, para o empoderamento da classe dentro da sociedade capitalista eram necessárias a criação de instituições para tal empoderamento, assim se legalizaram os partidos sociais-democratas e os sindicatos, e como novas instituições capitalistas se baseavam no uso das mesmas armas do Estado (burocracia, autoritarismo, hierarquia, cristalização de elites) para o engessamento de qualquer processo político que viesse a destruir o Estado e o Capital. Isto é, estava claro, partidos sociais-democratas e sindicatos se tornaram forças contrarrevolucionárias.
A academia aparece com uma característica semelhante, no entanto se foca nos chamados intelectuais orgânicos de Gramsci, ou minoria ativa para alguns anarquistas. Todo processo de lutas é também um processo de formação de vanguardas, não importa o nome que se dê a essa vanguarda, a sua relação dialética e sua formação a partir dos movimentos é da mesma forma, pois sempre existe aquele mais solicito, mais falador, com mais recursos, com mais tempo, etc. Tal vanguarda em suma é quem acumula poder dentro da instituição capitalista, e a sua recuperação, isto é, a sua cristalização é importantíssima à classe dominante para que um processo de luta não se torne em um movimento de contestação e mais radicalizado. Isto é, surge uma segunda função da academia nesse momento. Enquanto analisada pelo viés do dominador ela forma a intelligentsia capitalista, no viés da classe política do proletariado ela procura empoderar e cristalizar uma vanguarda de luta dos explorados e oprimidos, isto é, ela se torna uma porta de passagem para a transformação de uma vanguarda em uma nova elite. Aqui a academia se responsabiliza por um processo de cristalização de vanguardas.
No entanto quando da não-existência da possibilidade de inserimento de um vanguarda na academia para a sua cristalização ou por falhar nessa tentativa, visto que a mesma detém de limites dentro do Estado, a mesma se preocupa em uma terceira função, a do silenciamento das vanguardas dos oprimidos e explorados. É aqui que se concentra o academicismo de esquerda.

A cristalização das vanguardas e a formação de uma nova elite
Podemos6 situar a iniciativa desse processo com os marxistas legais na Rússia antes de 1905, em que em oposição ao bakuninismo radical de rejeição total ao Estado os mesmos surgem com ideias mais apaziguadoras com relação a isso. No entanto a sua intensificação acontece mais poderosamente (no contexto de lutas anticapitalistas) com a subida ao poder do partido bolchevique, e mais especificamente com as doutrinas da Internacional Comunista Stalinista. Para o Estado soviético a academia se tornou parte fundamental no processo de planejamento da economia planificada e das relações institucionais. Isto é, apesar das tentativas, os conflitos entre os gestores e os proletários foram se intensificando, e a academia se tornou arma poderosa nas mãos dos gestores dentro do capitalismo de Estado soviético, para que os poderes delegados aos proletários braçais nas fábricas e no campo fossem ou silenciados ou recuperados a academia era parte importante de todo o processo.
O processo de formação de um nova elite, ou melhor dizendo de uma “aristocracia proletária”, perpassa por três momentos principais individuais e coletivos. O individual se caracteriza pela elitização da vanguarda a uma classe dominante e o coletivo a ideologização dessa nova vanguarda enquanto classe como uma forma de poder proletário. Assim academia assume dois papeis dialéticos e fundamentais nesse processo, enquanto transforma socialmente (materialmente e objetivamente) uma vanguarda em uma elite (gestores), ao mesmo tempo ilude (construção da ideologia do Estado Proletário) a base sob a perspectiva de que o que acontece é um maior poder do proletariado nas instituições, isto é, a justificativa que com isso estava se combatendo a divisão do trabalho braçal e mental, e ao mesmo tempo formando instituições proletárias e comunistas.
O primeiro momento individual na cristalização da vanguarda pela academia se dá pelo empoderamento do mesmo dentro de um ambiente já elitizado que é a academia, ao qual o mesmo tem direito a voz e expressão através de interlocutores (os acadêmicos), a citar as pesquisas científicas. O segundo momento é quando o mesmo passa por um processo de internalização do sistema acadêmico passando assim a se utilizar de uma linguagem nova, aperfeiçoada de acordo com as normas internas, é o processo no qual a vanguarda é formada, treinada. O terceiro momento é dado pela inserção da vanguarda dentro desse ambiente, passando então a fazer parte de uma instituição capitalista com formas e relações próprias, aqui a vanguarda se cristaliza.
Quando analisamos coletivamente esse momentos percebemos que ao primeiro passo o coletivo se ilude com o fato de estar sendo empoderado dentro de uma instituição elitizada do capital, isto é, o mesmo se sente politicamente mais poderoso. O segundo momento o mesmo se ilude com o fato de que considerando que essa instituição detém da hegemonia do conhecimento o coletivo possa aprender muito com ela. O terceiro e último momento, é quando após a formação da vanguarda a mesma é tida como superior ao coletivo, a personalização do movimento coletivo no entanto mais consciente e sábia. Isto é, nesse momento o coletivo concebe a vanguarda formada como aqueles que melhor sabem os caminhos que o movimento deve tomar. É a cristalização da vanguarda pelo coletivo, a eternização da vanguarda pelo coletivo.
O passo subsequente a esses três é a morte e o nascimento. É a cisão dos dois, e a destruição do movimento. Nesse momento a vanguarda se torna elite, e o movimento se potencializa apenas historicamente na vanguarda que estava cristalizada. Isto é, a anterior personalização do movimento pela academia, recuperou o movimento, retirou-lhe o caráter de contestação e o inseriu como apenas outro conhecimento acadêmico. É a morte do movimento como luta do oprimido e explorado, a transformação da vanguarda em elite.
Assim percebemos que um movimento sempre influencia e é influenciado pela sociedade, e ao mesmo tempo a cristalização da vanguarda ocorre pois houve permissividade da base para que isso acontecesse. Não existem culpados morais, existem processos dialéticos e históricos que recuperam lutas sociais, a academia é apenas uma instituição voltada para parte do movimento.
Esse processo se repete nos movimentos de luta sul-americanos com diferenças sutis na caracterização dos momentos, mas com um método semelhante chegamos as mesmas conclusões. Das mesmas formas podemos perceber o que significa as vanguardas do movimento negro assumindo ministérios e secretarias, ou sindicalistas assumindo pastas no governo, ou mesmo a eternização das direções sindicais e partidárias.

O academicismo de esquerda

Como já explicado, a academia concentra suas forças de recuperação nas vanguardas dos movimentos, mas isso não a dissocia do coletivo. Isto é, todo processo de recuperação de vanguardas é um processo de recuperação de movimentos. Uma coisa não implica a outra, elas são dialéticas, assim como são as instituições que as recuperam. Isto é, o processo de recuperação do movimento está dialeticamente ligado ao processo de cristalização das vanguardas, da mesma forma que a instituição academia (onde se cristaliza a vanguarda) está dialeticamente ligada a instituição que recupera o movimento (sindicatos, ministérios, etc). Todo processo de recuperação é um processo dialético das relações sociais na sociedade capitalista.
Agora o debate se concentra sobre quando não existem as possibilidades da vanguarda ser cristalizada pela academia, a citar quando a mesma não consegue passar em vestibulares, não tem condições materiais de se manter ou mesmo não é aceita. Nesse momento parece que a academia falha na cooptação das vanguardas, mas não. Quando não se pode cristalizar a vanguarda a consolidando como uma elite acadêmica, utiliza-se da elite acadêmica resultante da cristalização de vanguardas anteriores para silenciar as novas. Isto é, a academia se insere nos movimentos sob a perspectiva de silenciar suas vanguardas. São os chamados cursos, encontros e seminários. Nessa prática a academia, na pessoa dos acadêmicos, se utiliza de toda sua erudição e capacidade subjetiva de sistematização dos pensamentos para projetar o seu poder material e objetivo na subjetividade das vanguardas. Isto é, de fato a academia passa a formar as vanguardas dos movimentos.
É fácil de perceber essas questões quando analisamos os encontros do MST em que os cursos são dados por doutores e acadêmicos, ou os encontros nacionais da CUT, ou do movimento estudantil. A subjetividade dessas vanguardas são tomadas pela projeção da classe acadêmica (gestorial) sobre elas.
O processo de utilização de toda sua erudição para projetar o seu poder material e objetivo sobre as subjetivas das vanguardas, e também das bases, é o que eu chamo de academicismo de esquerda. Um debate distante das lutas enquanto viabilidade de debate das bases.
Não é aqui uma afirmação para o rebaixamento da capacidade de debate do movimento, mas da construção de debates sem a interferência da academia em seu meio. Construção de movimentos autônomos, não somente em palavras, do Estado, mas prática e subjetivamente.

Movimento feminista contemporâneo tem muito a ensinar

Entendo por movimento feminista contemporâneo as teorias interseccionais e abolicionismo de gênero. Esse feminismo colocou em pauta uma questão importante de sua luta, o fato de existirem homens anti-machistas que silenciavam mulheres nos movimentos que deveriam ser para sua emancipação. Isto é, por mais avançada que fosse a consciência do homem ele continuava a querer ser protagonista de uma luta que não cabia a ele. Isto é, o agente de uma instituição por mais consciente que seja acabará sempre silenciando um movimento.
Mas não é apenas isso ao qual devo dar créditos ao movimento feminista por dar-nos um debate de tamanha envergadura, mas em especial a militante do feminismo comunitário Julieta Paredes que no ano de 2013 durante o Fazendo Gênero na UFSC criticou o feminismo brasileiro por se concentrar tanto em aspectos acadêmicos. Olhei para o lado e vi de fato uma maioria acadêmica, olhei os trabalhos apresentados e eram de fato acadêmicas empoderando movimentos, aperfeiçoando a linguagem de resistência desses movimentos de contestação do machismo, patriarcado, para uma linguagem puramente acadêmica. Não cabe a mim debater se Paredes estava correta em sua crítica, no entanto ela me abriu os olhos para um posicionamento crítico com relação a academia, um posicionamento que as feministas acertadamente tinham com homens em seus movimentos.

A academia enquanto tática de luta

Devemos entender que o processo histórico de formação de certas instituições carregam em si sementes importantes para a luta do proletariado. Se de um lado a academia apresenta um caráter contrarrevolucionário a mesma tem conquistas importantes para os processos de lutas, pois tem conseguido aglutinar conhecimentos diversos de maneira mais acessível favorecendo a sua socialização. No entanto isso não deve ser confundido com aspectos da militância de luta. Supor que a academia é um espaço com o qual lutas contra o hegemônico (como supõe certos setores) parece-me um erro tático, dada a poderosa arma de recuperação das vanguardas que a mesma contém. Assim, a academia se torna um instrumento tático dedicado exclusivamente a propaganda política. Não há estrategicamente interesses dentro da academia, apesar da mesma estar ligada muitas vezes (Brasil) aos setores de trabalhadores em educação, mas é preciso que nesse contexto haja uma diferenciação7.
Essa diferenciação deve ser passo fundamental existente já no movimento estudantil, compreender criticamente a academia como uma instituição da contrarrevolução, do silenciamento dos pensadores orgânicos dos movimentos dos explorados e oprimidos, possibilita que o militante estudantil do presente não se torne no acadêmico de sinceridade revolucionária mas prática contrarrevolucionária do futuro. Isto é, a academia é contrarrevolucionária em essência.
Os limites táticos da academia se concentram no seu uso de socialização do conhecimento histórico de lutas e no uso para financiamento de atividades de propaganda política (edição de livros, minicursos, uso de espaços estruturais para encontros de lutas).


NOTAS

  1. Radicalizar para destruir as instituições http://escritosradicaiseutopia.blogspot.com.br/2013/08/radicalizar-para-destruir-as.html >
  2. Idem
  3. Estratégia Revolucionária do PCB, vide https://www.youtube.com/watch?v=g6L0vGmVerY
  4. Intelligentsia capitalista vista em Jan Waclaw Makhaiski
  5. Recuperação é o processo pela qual as instituições capitalista retiram o caráter revolucionário e radical de movimentos e coletivos cooptando-os para a sistemática institucional do Estado e do Capital.
  6. É uma compreensão particular minha.
  7. No Brasil tem-se um caso especial de que o professor universitário é também um elemento da academia, e isso merece atenções especiais para diferenciações necessárias. O artigo pretende centrar-se sob uma crítica de perspectiva do movimento estudantil autônomo.